Psicanalista francês fala sobre a relação entre os adoecimentos mentais e o trabalho.
Entrevista à jornaiista Cristiane Reimberg
"A psicodinâmica vai bem, mas temos um paradoxo, o trabalho vai mal". A frase foi dita pelo psiquiatra e psicanalista francas, Christophe Dejours, em sua passagem pelo Brasil. Dejours publicou o seu primeiro livro sobre Psicopatologia do Trabalho em 1980. De lá para cá, o mundo laboral foi sacudido por mudanças organizacionais. Entre elas, a avaliação individual que traz grande impacto na saúde mental, Com a individualização do desempenho, o sujeito é isolado e fica mais fragilizado. Nesse cenário, não conta com a solidariedade dos colegas. Não há a cooperação que havia no passado. Os adoecimentos mentais, a incidência de assédio moral e até mesmo suicfduos relacionados ao trabalho crescem, Por isso, o trabalho vai mal. Mas as mudanças não ficam apenas nos problemas. A área estudada por Dejours se amplia com uma nova denominação nos anos 90: Psicodinâmica do Trabalho. Nos anos 80, o pesquisa- dor usa a Psicopatologia do trabalho para estudar como as pessoas estão adoecendo em uma organização fundamentalmente taylorista. No entanto, o trabalho que pode ser fonte de sofrimento patogênico e desequilíbrios, pode também ser construtor da saúde mental. Essa situação dialética entre sofrimento e prazer no trabalho passa a ser abrangida pela psicodinâmica, Christophe Dejours é professor do Conservaitore National des Aris ei Mútiers em Paris, onde dirige o Laboratório de Psicologia do Trabalho e da Ação. Esteve em São Paulo rio final de abril para participar do VI Colóquio Internacional de Psicodinâmica e Psicopatologia do Trabalho e do 1 Congresso da Associação Internacional de Psicodinâmica e Psicopatologia do Trabalho. Foi a primeira vez que esse evento ocorreu fora da França. Durante a estadia, o psiquiatra falou com a Revista Proteção sobre os problenias do mundo do trabalho atual e como superálos.
PROTEÇÃO - A forma como o trabalho vem
sendo organizado tem possibilitado um ambiente propício para o maior aparecimento
de doenças e transtornos mentais? Existe um conflito entre a organização do trabalho e o funcionamento psíquico?
DEJOURS - Há quarenta anos sabemos que é importante distinguir a relação entre corpo e as condições de trabalho, as quais abrangem riscos químicos, físicos e biológicos. Temos que entender o corpo das pessoas, Para isso, contamos com pelo menos três grandes disciplinas, que seriam a Medicina do Trabalho, a Ergonomia e a Higiene Industrial. Outra relação a ser compreendida é a organização do trabalho de um lado, e a saúde mental de outro. A organização do trabalho sempre vai trazer reflexos para a saúde mental. Na última década, vemos que os constrangimentos ligados a esta organização mudaram bastante. Antes já havia problemas de saúde mental ligados ao trabalho, mas, atualmente, existe uma evolução da patologia mental relacionada ao trabalho. Vemos, por exemplo, o acréscimo das patologias de sobrecarga. principalmente das patologias pós-traumáticas. Há um crescimento também das patologias depressivas e o aparecimento de suicídios no local de trabalho. Algo mudou na organização do trabalho. Uma dessas mudanças é a questão da avaliação, que implica em transformações na forma como o trabalho está organizado. Esse é um tema Importante, que estamos discutindo nesse evento [VI Colóquio Internacional de Psicodinâmica e Psicopatologia do Trabalho e 1 Congresso da Associação Internacional de Psicodinâmica e Psicopatologia do Trabalho].
PROTEÇÃO - O senhor poderia explicar essa questão da avaliação do trabalho e o impacto à saúde mental?
DEJOURS - Uma das coisas que aconteceu com essa transformação é urna importante mudança na relação entre as pessoas. A introdução da avaliação individual do desempenho criou entre os assalariados uma relação de concorrência. Chega até aos níveis da concorrência desleal, do cada uni por si e faz com que um trabalhador se coloque contra o outro, no próprio coletivo do trabalho. Há uma exaltação do desempenho individual. Isso resulta em uma situação em que o sucesso de um colega pode ser perigoso para a minha situação, a minha condição, o meu estado. Surge o comportamento desleal. O "cada um por si" leva a uma destruição progressiva do viver junto, do convívio, da confiança, do cuidado entre as pessoas e do ser solidário. O mundo do trabalho foi completamente transformado pela avaliação individual do desempenho, o que se traduz pela destruição progressiva da solidariedade. Isso leva à solidão, ao medo da própria avaliação e ao medo dos outros. Assim, a situação psíquica da pessoa mudou completamente.
Christophe Dejours e a Psicodinâmica do Trabalho
1 - O primeiro livro de Clirlstophe Dejours foi publicado no Brasil em 1987 com o título comercial de Loucura do trabalho, Estudo de Psicologia do Trabalha. O original em 1980. na França chamava-se "Trabalho: Desgaste Mental - Um Ensaio de Psicopatologia do Trabalho"
2 - Outro livro do pesquisador publicado no Brasil é Chrlstophe Dejours: da Psicologia à Psicodinâmica do Trabalho. A obra traz artigos de Dejours e foi organizado pelos professores Selma Lancman e Laerte Szneiwar.
3 - A Peicodinâmica do Trabalho, alada por Christophe Dejours. estuda porque o trabalho é fonte de sofrimento para uns e de prazer para Outros.
4 - Os estudos levam à crítica das avaliações individuais realizadas pelo mundo corporativo e à proposição de novas formas de avaliação coletiva. Não se trata de acabar com a avaliação o sim de transformá-la: “Os trabalhadores são preocupados em produzir de forme rentável e eficaz. Se ele é avaliado e colocado como inútil, ele se sente mal com isso, Há um aspecto psicológico. Não é um julgamento do trabalho e sim dos resultados, explica o pesquisador francês.
5 - A avaliação Individual foca o desempenho e cria a competição entre as pessoas. acabando com cooperativismo e isolando as pessoas: Surge o desejo de que o outro não consiga bons resultados. A ajuda mútua se desfaz, o a solidariedade acaba se esvaziando. No final, cada um se vê sozinho numa multidão”, diz Dejours.
6 - A solidão e o isolamento no mundo do trabalho contribuem para o aparecimento dos
adoecimentos mentais e para o assédio moral. Não são problemas novos, mas estão em
um cenário nova: não apoio nem a solidariedade dos outros à vítima.
7 - Em casos extremos, o isolamento e sentimento de fracasso podem levar ao suicídio.
8 - Já o reconhecimento pode lavar o trabalhador do sofrimento ao prazer. Com o reconhecimento de seus pares, o trabalhador passa a lazer parte do coletivo do trabalho. Ele espera esse julgamento sobre a qualidade do seu trabalho. A Identidade se consolida. O que era sofrimento se transforma em prazer.
Avaliação individuais de desempenho deverão tornar-se coletivas.
PROTEÇÃO - Seria possível construir uma nova forma de avaliação que não levasse ao sofrimento?
DEJOURS - Sim, acredita-se que seja possível.
As primeiras pesquisas e ações nesse sentido começam a dar resultado.
Não posso afirmar com certeza, mas há evidências de que outros modos de operar e outras formas de agir são passíveis. Por exemplo, diminuir a pressão sobre a avaliação individualizada e aprender a pensar e avaliar o trabalho coletivo, sobretudo, a questão da cooperação. É possível mostrar cientificamente e clinicamente que a cooperação não é possível sem um convívio, sem um saber viver junto. Se restaurarmos a cooperação, seria possível restaurarmos o mundo social do trabalho, que traz algumas questões especificas para a psicologia. A questão da saúde mental não pode resultar de um processo Individual, minha saúde mental depende também do tecido social e do viver junto. Isso quer dizer que depende dos tipos de relações que foram construídas, estabelecidas com os outros. Nesse sentido, temos a cooperação horizontal, entra o que chamamos de equipe coletiva (te trabalho. Mas também devemos ter cooperação nas relaçôes hierárquicas, quer dizer, no nível da cooperação vertical.
PROTEÇÃO - Por outro lado, a falta de diálogo pode levar ao sofrimento psíquico?
DEJOURS - Não é a questão da (alta de diálogo pensando no diálogo num sentido mais geral do termo. A criação do espaço de palavra não teria o mesmo objetivo que o de urna psicoterapia de grupo. No caso da Psicodinâmica do Trabalho, busca-se construir uma palavra que tenha como eixo principal a vivência do trabalho e que esta seja compartilhada naquele coletivo.
Não é uma questão dialógica no sentido de um ser legal como outro. Eu posso trabalhar inclusive em boas condições com alguém que eu não ame necessariamente,
mas que eu respeite o modo como ela trabalha. Reconheço a qualidade do seu saber fazer. Posso confiar nela em relação às regras do oficio. As relações são construídas tendo como referência o mudo de trabalhar. AI. sim, as trocas de palavras são orientadas em direção ao acordo. Existe um entendimento em relação ao objetivo
que vai ser atingido. É por isso que o trabalho tem essa potência, essa força de pacificação tão grande. Quando a questão da cooperação é bem tratada, o trabalho
pode se tornar um instrumento extremamente potente para afastar a violência entre
os seres humanos.
PROTEÇÃO - Como o senhor avalia a questão do assédio moral hoje?
DEJOURS - Primeiro, o assédio moral não é
uma questão nova no mundo do trabalho. Ele sempre existiu, desde a Antiguidade
com os escravos, no antigo regime com os servos, na colonização e de uma maneira extremamente brutal no capitalismo selvagem do século XIX. Atualmente não existe
mais assédio do que antigamente. O que mudou é a solidão. Hoje, em lace ao assédio, estamos sozinhos. Ninguém se mexe. ninguém faz nada, ninguém fala, ninguém protesta. Não é só a questão do assédio, mas a questão da traição dos colegas também. Eles não falam, eles recusam o testemunho. Isso é extremamente perigoso psicologicamente, e o resultado é o aumento considerável das descompensações, ou seja, crises psicológicas ligadas ao assédio. Então, não é o assédio que mudou, mas sito as descompensações que aumentaram muito. ‘Um dos aspectos importantes com relação
à saúde mental está ligado à busca incessante para se manter bem, A questão da descompensação poderia ser entendida quando as formas de assédio ou ainda de outros problemas ligados ao trabalho levam o sujeito a não suportar mais. a não conseguir manter mais um equilíbrio. sempre instável, que lhe permite viver sem entrar em crise, seja ela com urna expressão mais de ordem psíquica ou mesmo física (psicossomática).
PROTEÇÃO - Outro aspecto muito noticiado hoje CRI (lia é O StliCídiO relacionado ao imhaiho Qual cenário leva a este ato extremo?
DEJOURS - Duas coisas principais levam ao suicídio. Primeiro sena a grande solidão frente à injustiça, isso que falamos um pouco antes, e o segundo elemento é a implicação no trabalho, como as pessoas se colocam na sua atividade, As pessoas que se suicidam no trabalho não são necessariamente pessoas que tém antecedentes psiquiátricos. Não são, necessariamente, pessoas que apresentam sinais, antecedentes de descompensação. Por outro lado, estão muito implicadas nas suas tarefas, mito ligadas ao que fazem. São pessoas que de- mm muito de si para o trabalho, que deram muito do sua vida privada. Muitos desestabilizaram a própria família por causa do trabalho. o que provoca problemas afetivos no casal e na família. Nesse cenário, ele sofre problemas na empresa. Muitas vezes, o retorno da empresa é desleal cciii esse trabalhador. Por exemplo, ele é mandado embora. A empresa quer se livrar dele. O balanço que se faz é trágico. Ele deu tudo para o trabalho e é retirado, Há um risco grande de crise psíquica, e alguns vão se suicidar.
PROTEÇÃO - Como a questão dos suicídios relacionados ao trabalho vem se configurando na França? O que vem sendo feito para combater essa situação?
DEJOURS - A questão mais importante é a intervenção dos juizes, da justiça e também dos fiscais do trabalho. Alguns casos de suicídios levaram a processos contra as empresas para que elas fossem responsabilizadas, Em geral, as empresas respondem que as pessoas se suicidara porque têm problemas pessoais e não por causa do trabalho. Mas, atualmente, alguns juizes na França aprenderam com a clínica do trabalho. Assim, condenaram muitas empresas por causa cio suicídio relacionado a ele. Nesse cenário, começou a se desenvolver urna verdadeira preocupação entre as empresas francesas, porque elas também Lêm medo de serem condenadas. Esse medo não se deve apenas à penalidade financeira que vão sofrer na justiça, o que custa caro, mas também pelo dano que isso traz à imagem da marca. Há um impacto comercial, com efeitos importantes. Então, vemos na França um primeiro eixo, que seria essa questão dos processos em cada caso específico. Atualmente, o Estado francês se sentiu implicado e também fez mudanças na legislação. São leis repressivas relacionadas com a questão da saúde mental no trabalho.
PROTEÇÃO - Há estatísticas relacionadas à questão dos suicídios no trabalho’
DEJOURS - Não temos números sobre Isto. Em nenhum lugar existem números confiáveis. Na verdade, não há estatísticas porque todos esses estudos epidemiológicos jamais colocaram a relação do trabalho com os suicídios. No entanto, com a visibilidade que a questão vem ganhando, para os próximos anos haverá estatísticas a respeito.
PROTEÇÃO - Diante de tantas exigéncias organizacionais. como as pessoas conseguem construir sistemas defensivos?
DEJOLJRS - uma questão muito difícil saber conto as pessoas constroem suas defesas. Quando fazemos a clínica do trabalho, descobrimos as estratégias defensivas, Há uma grande diversidade delas, que estão muito ajustadas aos corutranginwntos das organizações do trabalho. Por exeinpIo,
as estratégias de defesa na construção civil não são as mesmas 1o que na indústria nuclear. Também não se desenvolve a mesma estratégia do que no exército ou as que
são construídas pelos executivos. O problema do clínico do trabalho, em primeiro lugar, é identificar essas estratégias de (lefesa e descrevê-las. É preciso compreender ao que elas se destinam e qual é a função de cada uma delas para lutar contra ca(la tipo de sofrimento. Mas como as pessoas constroem essas defesas cont latia sendo uni mistério.
PROTEÇÃO - É possível transformar o sofrimento no trabalho cai prazer?
DEJOLJRS - 0 grande meio de transformar o sofrimento em prazer é o reconhecimento. Esse reconhecimento acontece a partir da gratidão cm relação ao trabalho que foi feito. É o reconhecimento na forma de julgamento da qualidade do trabalho. Essa qualidade está sempre relacionada a certo modo de sofrimento no trabalho. Por exemplo, você não pode ser uma boa jornalista se você não sofrer com o que você faz, com relação aos prazos, à escrita, à autocensura, tudo isso faz parte. O prazer só pode vir no segundo momento, quando, por exemplo, houver o reconhecimento sobre a qualidade do artigo publicado.
PROTEÇÃO - Qual a importância sobre a Psicodinâmica do trabalho nesse cenário atual?
DEJOURS - Isso é bastante paradoxal porque
não há muitos pesquisadores da Psicodinâmica do Trabalho. Além da França, existe no Brasil, de uma forma bem marcada; no Canadá, especialmente em Quebec, Também está se desenvolvendo em outros países europeus. No entanto, ainda sem muitos pesquisadores, temos um impacto científico multo importante no espaço público. Isso porque a mídia e os jornalistas começaram a (lar urna evidência para essas questões. Outro fato importante é a prática dos Juizes, que com as condenações fizeram com que houvesse mudanças. Por Isso, o Impacto da Psicodinâmica do Trabalho é relativamente importante e começa também a sensibilizar o poder político. Participei, nos últimos meses na França, de muitos debates com deputados, senadores, ministros, Fui chamado ao Congresso Nacional Também existe urna sensibilização muito mais importante dos sindicatos dos trabalhadores. Então há um impacto político na Psicodinâmica do Trabalho.
PROTEÇÃO - Para finalizar, como as empresas deveriam agir para mudar esse cenário de cada vez mais adoecimentos mentais?
DEJOURS - As empresas precisam reequilibrar o exercício do poder, o que se chama hoje de governabilidade. Deve-se reequilibrar o que hoje é dominante, a gestão. Esse reequilíbrio tem que ser buscado com urna referência muito maior e significativa em relação ao trabalho. Não ao emprego. É claramente a questão do trabalho. Precisam reintroduzir a ciência do trabalho na formação de engenheiros, dos adminisstradores, dos gestores. Isso significa que ao reintroduzir o ponto de vista laboral na empresa se diminui o peso que foi dado à gestão.
Enviado por: Patrícia Santos
Fonte: Revista Proteção Junho/2010
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